segunda-feira, agosto 27, 2012

NÃO VOLTO PARA ÍTACA

Ἄλλα δὲν ἔχει νὰ σὲ δώσει πιά. 
“Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te”
in “Ítaca”, de Konstantinos Kavafis (trad. de Jorge de Sena)

não volto para Ítaca
não encontro o caminho
e se os pretendentes ocuparam
o trono? ou já não haja peixes
que se cheguem à mão das crianças
quando estas dão uns pequenos passos
nas águas das praias mornas?

já não há velhos imersos à sombra das árvores
a jogarem ao dominó, e lançando
piropos às jovens que passam
devagar de corpos de palmeira
nem há águias que façam ninho nas falésias
de Ítaca terão partido para a pátria dos Lestrígones?
lá os picos são mais altaneiros

ouvi das sereias que finalmente, os filhos
de Cila e Caríbdis invadiram Ítaca e lá impuseram a lei
mas tenho lá meu querido pai, Laertes
a minha Penélope, meu sol no zénite
e meu pequeno Telémaco — agora já adulto
não os posso deixar lá, sós
mas como destruíram de Ítaca
os portos e os barcos
só lhes posso pedir que venham
a nado até ao meu navio
bastar-me-á lançar a âncora, embora a placa continental
de Ítaca desça a pique até aos abismos

já não volto para Ítaca
ouvi que falam e escrevem lá
agora uma língua estrangeira — não, não é a dos Feaces
é de uma potência ascendente, o Púnico,
já antes ocupavam a Sicília, mas como não previ eu
o herói barbudo dos engenhos sem número,
que se lhes não estreitaria a ambição
o reino de Siracusa?

a ágora de Ítaca está despida de gente
já para lá não volto
para onde quer que eu vá,

é Ítaca o cristal dos meus olhos
por isso rumo para Olissipo

Rui Miguel Duarte
27/08/12

quinta-feira, agosto 23, 2012

BALADE POUR FORT VAUX


(à la mémoire de l’épisode du Fort Vaux 1 à 7 juin 1916, bataille de Verdun)

Cette semaine là il a plu
il a plu sur les casques des hommes
il a plu sur leurs pieds
lorsque toutes les nuages conjurèrent
d’écraser la terre
écrasèrent leurs poumons
leur air leurs excréments
il a plu et cette pluie
fendilla leurs gueules
ils étaient des taupes démons
des galeries Pandore serrée dans sa boite

qui leur relâchera leurs épaules
de telle masse de montagne ?

quelle pluie qui leur
sécha toute l’eau
quelle pluie qui leur
écrase les cendres
qui leur lava l’oubli

sacré juin !
il n’y aura plus de juin depuis juin

Rui Miguel Duarte
23/08/12


sexta-feira, agosto 10, 2012

PRECES OMNIVM MILITVM (oração de todos os soldados)

“Qual de vocês que seja pai seria capaz de dar uma pedra ao filho, quando este lhe pedisse pão?”
Evangelhos segundo Mateus 7:9

Senhor um peixe te pedimos
e uma cobra nos deste
um pão te pedimos todos os dias
mesmo aquele pedaço que ficou no fundo da cesta
por terem sido esmigalhadas as bocas que o comeriam
e uma pedra de aço nos tritura os dentes
água te pedimos na hora em que as chamas
mais altas ardiam e corriam desenfreadas
pelas trincheiras mas aguardente nos deste
que o lume mais ateia servido num cantil
velho já cheio da urina dos que morreram

pedimos-te um coração, um coração
só que fosse que os nossos tambores
batesse mas no lugar dele
nos colocaste uma granada espoletada

— neste segundo eterno perguntamos-te:
não bastaria, Senhor, ter explodido,
antes do primeiro toque para a carga
antes de terem inventado
as eviscerações e o metal quente,

este nosso coração?

Rui Miguel Duarte
10/08/12

sexta-feira, agosto 03, 2012

AUREA MEDIOCRITAS

Uma das mais perniciosas consequências do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) é que de repente a ignorância foi promovida a sabedoria e ciência. Assim como no caso do Sr. Relvas. E no futebol, em que toda a gente é treinador de bancada, embora sem creditação universitária. Até os amigos deixam de se calar para me ouvir nisto, em que sou menos ignorante do que eles. Quando amigos e conhecidos falam de finanças, electricidade ou sonoplastia, este burro baixa as orelhas. Como não sei, desconheço, como mero amador, ou simples ignorante, só me sobra o silêncio atento de aluno sentado tranquilamente a beber do seu mestre o conhecimento. Quando se trata da ortografia da língua portuguesa, e a minha contestação ao dito AO90, esses amigos e conhecidos, que saberão de finanças, electricidade ou sonoplastia mas não de linguística, ciência filológica ou literatura, espetam-me célere dedo num olho e lançam-me, como um raio, a primeira sentença:

 — Se não se pronuncia, não se escreve.

Se me apresso a explicar-lhes o valor diacrítico das consoantes ditas mudas no Português Europeu, a abertura da vogal átona precedente, ou as incongruências de se eliminarem os "p" de "recepção", "decepção", "concepção", "conceptual", "espectador" em Portugal, que se mantêm no Brasil, o que viola o próprio espírito unificador do AO90, além de reconhecidamente induzir à alteração da pronúncia da vogal precedente, no sentido do emudecimento, em vez de manterem a abertura da vogal precedente, donde:
- "receção" se pronunciará (como reconhece D'Silvas Filho, um ferrenho adepto do AO90, no portal ciberduvidas) como "recessão";
— "deceção" como "dec'ção";
— "conceção" como "concessão" (ou "conç'ssão"); -
— "concetual" como "conç'tual"
— "espetador" como "esp'tador", passando a confundir-se com o nome deverbativo de agente do verbo "epetar", designando aquele que coloca um espeto, que espeta alguma coisa;

Não demoram a espetar-me outro dedo no outro olho, pois não podia este ficar a rir-se de ver o seu gémeo espetado:

— Foi decidido entre países que falam português e o governo mandou aplicar, logo temos de aplicar. Queres ser despedido?

E pronto. Viva a áurea mediania acordista (não a horaciana). E viva este novo século luso, em que antes podia perceber apenas de finanças, electricidade ou sonoplastia, mas agora, já têm equivalência a linguística, ciência filológica e literatura, adquirida sem necessidade de certificado à pala deste AO90! E melhor — ao espetarem os dedos nos olhos deste pobre que nada sabe de finanças, electricidade ou sonoplastia mas conhece alguma coisas de linguística, ciência filológica e literatura, adquirem, sem esforço, sem estudo, sem experiência, e sem processos de equivalências, o supremo e mais cobiçado dos diplomas: um Doutoramento como Espetadores.