quinta-feira, janeiro 28, 2010

AS RAZÕES DAS RAÍZES


"As raízes é claro não se vêem
mas tu sabes
nelas se sustenta a árvore.
Para seres justo
pensa nas raízes"
Giannis Ritsos


Ao olhares para a árvore
não te detenhas na textura da casca
o tacteado das folhas
nada te revelará

Não o pouso das aves,
como se ele, por se acostumar
ao entrelaçado dos ramos,
lhe conhecesse os segredos
nem os seus bicos,
por muito que lhe amem os frutos

Não inquiras o vento
que a conduz na valsa
nem a chuva
que a veste de cristal
nem o sol que a salpica
de setas de reflexos de lume

Se queres fazer justiça à arvore

pergunta à sua alma oculta
pergunta ao que dela
os teus olhos
não vêem
às raízes escondidas
nas entranhas do solo

pergunta-lhes em que
profundas águas
tem bebido
e que terra
tem desvendado e sorvido

se é que queres
ser justo com a árvore
conhecer que razões dizem os seus anos
e saber que seiva a percorre
e entender o sabor dos seus frutos

Rui Miguel Duarte
28/01/10

domingo, janeiro 24, 2010

BATALHA NAVAL


“Mas, quando viu que o vento era muito forte teve medo, começou a afundar-se e gritou”
Evangelho de Mateus 14,30 (versão A Bíblia para todos p. 1974)

Nessa madrugada
as águas tinham arestas
como gumes frios de vidro
cortando os pés

o vento era uma matilha de molossos
cravando as mandíbulas sobre os teus membros
e perfurando-te o ouvido
até à espinha
com um silvo de cobra

Em baixo abre-se um alçapão
sob o teu pé, que se perde
e se combina com a matéria do abismo

Nada mais podes fazer
só a agitação da mão e o grito do náufrago
para tudo o mais o teu corpo
é já um com a água e o lodo

– Porque duvidas?
as arestas e as matilhas
o lugar da luta e do medo
estão na tua alma

20/01/10

sexta-feira, janeiro 15, 2010

QUEM SEGURA A MÃO?



Os antigos Gregos
diriam que
a mão de Posídon
abalara a terra
porque da ofensa de Ulisses
ainda não lhe foi
aplacada a cólera

Outros
dizem
ter sido a mão
de outro Deus
porque o povo
deu a face e o coração
a outro, ao Adversário
e assim
os dedos tocaram
nas raízes da terra
simplesmente
como se soltasse
uma folha ao vento
pois há uma cólera
por aplacar

Nem lhe sobra a pele

Os escombros
em carne viva
lançam ao espaço
uma mão
requerendo
outra mão

Quem a segura?

15/01/10
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sábado, janeiro 09, 2010

Nesse dia…


Nesse dia as nuvens
encheram o saco
e este rasgou-se
tanto que já não havia fissuras
mas a bocarra toda aberta
do céu
na indiferença do sol

Nesse dia um Zeus furioso
desatou as cordas
que continham o bojo das nuvens
e delas fez chicotes
para escalavrar a terra

Nesse dia a chuva
foi visita intempestiva
e veio grosseiramente
brindar-nos
com uma bebedeira
de lama e morte

4/01/10

segunda-feira, janeiro 04, 2010

NA ESTRADA





"Foi nessa altura que se lhes abriu o entendimento e o reconheceram…"
Evangelho de Lucas 24,31 (versão A Bíblia para todos, p. 2100)

Não foi nos ramos de palavras
que distribuía vibrantes
de enigmas ilógicos

Não foi no gesto ténue de pássaro
no tremor do dedilhar dos fólios
da Lei Profetas e Escritos

Não foi no bronze liso
da pele do rosto
nem no negrume límpido
da barba

Não foi no timbre da voz
barítono na hora nocturna
divagante aos nossos cuidados
nem no incêndio ateado
nos nossos corações
ao seguirmos o fio diáfano
do seu discurso
de sonhos

Não foi no andar
preso da distância
no frenesim de esmagar
hectómetros
sob os calcanhares
sempre mais para diante

Foi no partir do pão
que nos abriu os olhos
e no-los lavou do sono

2/01/10

domingo, janeiro 03, 2010

A TUA PRESENÇA


« Les fleurs/ et les arbres/ crient/ après ta présence // C’est leur beauté / que je pleure / à travers l’absence de tes yeux ». Nic Klecker (poeta luxemburguês, 1928-2009)

A tua presença
é um grito
inscrito com lâmina
na casca das árvores
e nas pétalas das flores

A tua presença
é um vento sibilado
no marulhar
das palmas das folhas

A tua presença
induz ao canto
e à exuberância
os prados
transmite-se no voo
ordenado
dos pássaros

A tua presença
tinge as flores
de múltiplas cores
ao meu olhar

Mas quando não estás
o teu próprio olhar se ausentou
ficam as folhas ruivas
de Outono
as vacas pastando no prado
a serenidade dos vinhedos
no vale do rio subindo
ao céu

Quando não estás
sem o teu olhar
resta o meu imperfeito
e este chora

Quando não estás
as flores e as árvores
exibem a sua beleza
mas só isso
a neve é branca
só branca

não sei é se choro
as flores as árvores e a neve
de terem beleza própria
ou se de uns certos olhos
lá terem deixado a sua ausência

31/12/09

sábado, janeiro 02, 2010


"La mort sait bien
qu'elle va gagner le duel
en attendant

la vie
a des parades habiles
et l'amour
guide son fleuret"

Nic Klecker (poeta luxemburguês, 1928-2009 )


A morte e a vida têm um encontro marcado
um duelo à espada
de vida ou morte

a vida, com a fragilidade das pombas,
tem de ser conduzida

a sua testemunha é o amor
é este quem lhe adestra a mão
e quem a mantém denodadamente
no combate
mesmo que a vacilação
lhe desça pesada aos pés

a morte não traz padrinho
porque precisaria de ajuda?
o seu braço tem uma estocada irresistível

assomando ao campo aberto
o poeta assiste a tudo
a uma escassa distância
e diz a dor dos golpes
da morte
o dizê-lo é uma hábil parada
com que os vai sustendo

de um pouco mais ao longe
ouve-se a voz
espessa e férrea de um Profeta
declarar mudado o desfecho
para o duelo:
“O Amor
não falha
e o ferrão da morte
está quebrado”

Rui Miguel Duarte
26/12/09
Publicado também em Liricoletivo