sábado, dezembro 26, 2009

PALAVRA PROFÉTICA

Mas diante da igreja, antes quero dizer cinco palavras tiradas da minha cabeça, mas que os outros possam aproveitar, do que milhares de palavras em línguas desconhecidas.” 1 Cor 14,19 (versão A Bíblia para todos p. 2246)

Há um baú de tesouro
repleto e palpitante de mistérios
inefáveis depositados por Deus,
como a terra úbere de minérios,

os próprios anjos dele se surpreendem
reclinados na indagação
de novo vento que lhes enfune as asas
e nos lábios lhes cante nova canção

não é de madeira preciosa
nem engastado de diamante
é dotado de riso e choro
de canto doce e troante

esse tesouro é a mente
incendiada e tenra do profeta
apurada para a interpretação de Deus
trasladada em voz de pastor, rei ou poeta

desse tesouro não retira o profeta
um gemido em estado bruto inexprimível
em língua celeste inaudita
mas palavra de homem inteligível

ao tempo e ao entendimento da assembleia
conforto coragem leme e lema para o povo
assim dita e pronunciada é como na árvore
nascente a pujança de um renovo

20/12/09

Publicado ineditamente em Papéis na Gaveta

quarta-feira, dezembro 23, 2009

NEVE


Passa na rua

um leopardo malhado

as patas macias marcam a cadência do silêncio


o sol arrefeceu

quando as nuvens irromperam

em beijos

à terra


Passa na rua

um leopardo das neves

o bafo frio gelando o ar


a cauda semeia o branco

na rua sobre as árvores e às portas


o olho perde a íris

e todo é esclera


21/12/09

segunda-feira, dezembro 21, 2009

MANJEDOURA


“Nasceu-lhe então o menino, que era o seu primeiro filho. Envolveu-o em panos e deitou-o numa manjedoura, porque não conseguirem arranjar lugar na casa.” (Lucas 2,10 versão A Bíblia para todos, p. 2047)

Não havia uma bacia de água
onde a jovem parturiente
amaciasse os pés
crespos da caminhada

Não havia leito
onde alongasse as pernas
das horas moldadas
ao dorso do jumento

Não havia travesseiro
em que desatasse a dor
jugulada do parto

Não havia linho fino
para cingir os membros tenros
do primeiro filho
Não havia o anteparo
de um berço de ouro

Apenas havia umas faixas
uma tiras de pano de saco rasgadas
apenas sobrava uma manjedoura
para hospedar a noite de feno
do pequeno corpo amarantino

Num estábulo
na ponta mais longe da estrada
aí onde os animais
consolam as bocas
foi disposto o pão vivo do céu


Rui Miguel Duarte
15/12/09

quarta-feira, dezembro 16, 2009

O TROTE

O tenro corpo
firmado na sela
Uma pequena mão adestrando pela rédea
o minúsculo grão de ar
da apreensão e do espanto

A outra mão não se retém
de pousar uma festinha
no enriçado da crina

E a menina trota
trota o pónei
gentil

A vozinha canta uma ordem
e o pachorrento bojo da montada
desliza sobre os cascos
num chão de seda

E a menina trota
trota o pónei
suave

Nesse trote que podia
tornar-se galope
embrenhar florestas e rasar planícies
contornar vales e transpor penhascos
ou riscar uma nuvem no espaço
mas que trota e risca apenas
a abóbada do nosso olhar

11/12/09

segunda-feira, dezembro 07, 2009

Joanyr de Oliveira

Faleceu o poeta e pastor Joanyr de Oliveira.
Fica o mundo mais pobre de um servo de Deus e a cultura lusófona de um celebrado poeta e escritor. Ver aqui.

domingo, dezembro 06, 2009

Poética rósea

"Poesia é também olhar uma rosa até que nossos olhos pulverizem os espinhos." (João Tomaz Parreira)

Até pulverizar os espinhos
da rosa
à força de olhar
até que só reste deles
a raíz cortada
até ao branco
até à nua
altivez do caule

até deixar marcas
nas folhas
com a ponta da faca
dos dedos

aninhar-se na carne ígnea
das pétalas
imbricar-se nas suas volutas
até descer
ao fundo da campânula
tacteante nas patas das abelhas
até esmiuçar os estames
e até à nervura
beber o pólen

até a boca cheia
de açúcar
estar pronta
a conquistar o ar

29/11/09

Poética zoológica

O poema é um animal

Feroz como um urso faminto
de beleza matizada e elegante
como um leopardo
por vezes ouve-se-lhe o rugido de leão
a grande distância, impondo respeito

Ora é um gato, de provada agilidade
caindo sempre de pé
e revivendo sete vezes
no ouvido,
ora é um pássaro
que não comanda as próprias asas
não resistindo a abri-las
e a demandar os ares

Outras vezes, mais circunspecto,
apetecem-lhe
as profundidades,
as cores e formas
e tesouros perdidos
de afundados galeões
que só o mar oferece
e é um peixe,
outras é uma cobra
arrastando-se pela terra
demorada e silenciosa,
ou um coiote no deserto,
de nariz ao rés do chão
em busca de alimento

Um coelho,
que em qualquer vão de rocha faz a toca,
um pequeno lagarto,
que penetra nos palácio do rei

Como a baleia cruza todos os oceanos
como o albatroz sobrevoa todos os meridianos
como a andorinha sempre retorna ao seu ninho

O poema,
mesmo quando os demais
animais dormem,
abre os olhos
é então a plácida coruja
a vigia dos sonhos

27/11/09

No sonho


Queria ver-te os olhos, minha filha,
mas escondeste-os de mim

Entraste num navio
ou numa nave espacial
bateste as asas
para onde
só tu podes ir

sonhas, minha filha?
com que sonhas tu?

não se vê sobressalto em ti
a placidez da pela da tua fronte
é um rio de trigo maduro
o teu respirar
os dedos do vento que tangem velas
os teus cabelos
os canais e afluentes de navegação de alto mar

não me queres levar
na cabina de pilotagem
ou no cesto da gávea?
levar-me a montar um cometa em pleno voo?
a encalhar num atol de coral?
se te fizeres amiga de um duende de jardim
pedes-lhe dois malmequeres,
um para mim e outro para a mamã?

é melhor que eu me cale
e te deixe só com o teu soninho
tens todo o teu sonho para percorrer
ao acordares terás para cantar
altissonantes epopeias
e maviosos poemas

5/12/09

sábado, novembro 21, 2009

NEGAÇÃO

James Tissot (pintor francês 1836-1902)
Brooklyn Museum Robert E. Blum Gallery


“«Olha, Pedro», avisou-o Jesus, «não cantará hoje o galo sem que me tenhas negado três vezes»” Lucas 22:34 A Bíblia para todos, p. 2094

Antes de o galo acordar o sol
antes mesmo de a aurora multiplicar rosas
ouvir-se-á o murmúrio das vozes
no pátio
e ao vento uma palavra não soprada

O coração esconderá a vergonha
lançá-la-á ao crepitar da fogueira
acesa para aquecer corpos
consumir fadigas e tristezas
mas o ardor de um coração culpado
fogo nenhum extingue
antes mais o inflama

O seu rosto será familiar
cuspido e escarrado
alguém o terá visto
o braço direito desse Rei

E ao vento uma palavra não balbuciada

Sentados na roda dos coscuvilheiros,
os olhos mirarão o homem
de fronte suada de desassossego e fuga
As vozes certificarão o que ele preferirá ignorar
terá sido um desses que terão partilhado a mesa com o Galileu
e que tentará então com a aba do manto
manter o anonimato

As vozes darão carne à sombra que ele ansiará
por abandonar numa esquina

Mas fugirá o descanso desse coração incerto
pois ao vento uma palavra NÃO será protestada

E será este protesto quem acordará o galo,
que então se lembrará que será a hora

Outros olhos então pousarão nos seus
os olhos condoídos do Mestre
que lhe atravessarão a couraça da alma

E na esquina onde se quis esquecer
será aquela em que se reencontrará
no espelho das lágrimas: ainda que a voz minta
estas só sabem dizer a verdade
e desconhecem a palavra
NÃO

20/11/09

quinta-feira, novembro 19, 2009

NO HELESPONTO, XERXES




“Assim que viu o Helesponto inteiro recoberto de navios, todas as suas margens e as planícies de Abidos cheias dos seus homens, Xerxes considerou-se a si próprio afortunado, mas em seguida chorou.”
Heródoto, Histórias VII, 45


Do alto do meu trono
o meu olhar voa de mim
e entrelaça as duas margens
desta passagem
do Helesponto para a Hélade,
pequena janela que se abre imensa
para a promessa de glória

O meu olhar plana então
sobre estas plagas e campinas
atapetadas de milhões de navios cavalos e homens
que, pintados de todas as nações da Ásia e do Egipto
e estampados do brilho do aço das armas,
eriçam os estandartes em saudação à minha glória
à glória do Divino Príncipe da Pérsia

De dentro da voz de júbilo
decreto que eu, Xerxes, sou mais do que abençoado

Mas para além de até aonde pode o olhar adejar
não descortino toda a terra, nem possuo todo o mar
Há um aviso um arrepio um pio de pássaro

O meu olhar foi finalmente visto
regressar à sua morada e decantar em lágrimas
este estreito tão estreito que me aperta a traqueia

Pois não há reis
que ocasionalmente se não prostrem
à enfermidade e à dor
também eles contam a terra e as pedras
com que têm coberto os seus amados
Rompendo a janela da minha glória
o meu olhar abre a porta da vertigem
mais funestamente desejada do que todo o ouro
a vertigem altaneira
da morte

No meu espírito fala
uma voz dalém das orlas do tempo
Lê um epitáfio inscrito num mausoléu:
“Aqui jaz Xerxes da Pérsia Rei dos reis
no Olimpo anelou o Hades
foi a primeira flor nascida da Primavera
por mão ceifada em pleno Verão
conquistador da terra
hoje servo debaixo dela.”

E prossegue:
“Cem anos e destes milhões
só se contarão as areias das praias
serão meros pontilhados numa tela
tinta fresca na pena de um contador de histórias.”

12/11/09

Publicado ineditamente em Poeta Salutor, por gentileza do poeta J. T. Parreira

domingo, novembro 15, 2009

EXISTIR

Existir, segundo o significado etimológico da palavra, é estar fora de nós próprios, ex-sistere.

Há pessoas que são como planetas que só conhecem movimentos de rotação: entra dia e sai dia e o mundo delas revolve-se num entediante movimento centrípeto, sempre e somente em torno de si próprias. Pessoas egoístas, possessivas, excessivamente centradas em si próprias e nos seus interesses, não existem realmente. Não conseguem sair delas próprias. São como rosas que nunca abrem, fontes que nunca nascem, estrelas que nunca brilham. Não participam das mil e uma vidas que existem fora delas – mais, para elas não existem outras vidas, só a sua.

Existir, ex-sistere, implica sair de si próprio! E o maior êxodo é aquele que é feito para fora de si mesmo.

Sair de si próprio provoca um descentramento. O centro geométrico muda à medida que o outro começa a ocupar a sua atenção: começa a dar-se, a repartir-se, a semear-se nos outros. O grão de trigo, se não morrer fica só; mas se morrer, se sair de si próprio, passa a existir como pão que alimenta

Sair de si próprio implica arriscar – arriscar-se a sair para um mundo-outro onde nada é costumeiro, habitual, familiar. Enquanto permanecer no útero em que foi concebido – esse seu habitat natural em que a vida se foi desenrolando – nunca conhecerá outros desafios e novas dimensões de vida. As novas harmonias já foram dissonâncias; as novas descobertas já foram impossibilidades; as novas ideias já foram silêncios; o romance e a poesia já foram páginas em branco. Há que arriscar!

Sair de si próprio faz aumentar o horizonte de esperança. A vida deixa de estar limitada aos nossos poucos recursos e à nossa pequena dimensão. O nosso horizonte de esperança aumenta ao percebermos que existem outras ideias, outros dons, outros contributos, outros sonhos que fazem o mundo avançar e pular.

O maior desafio da vida é existir.


sexta-feira, novembro 13, 2009

ROBERT ENKE (1977-2009)


O Outono vestia-se de chuva e alguma neblina
era o cenário indicado para dar
ao silêncio o devido descanso

Pendura literalmente as chuteiras lavadas
deixa a carta à mulher com um beijo
sobre a mesinha baixa da sala,
essa em que dispuseram tantas angústias

Dedilha os cabelos da pequenina Leila
e o pêlo de um dos seus cães

Conduz o carro o derradeiro quilómetro
até onde a via férrea era recta
pois assim o comboio passaria
à velocidade máxima
sem haver como errar
a colhida

Alinha-se na baliza das linhas
oferece ao silêncio um segundo
de domínio, um só
De braços abertos
na postura do guarda-redes
para receber a bola de luzes e aço
o último penalti que não defenderia

13/11/09

quinta-feira, novembro 12, 2009

O CHORO DO REI


Assim que viu o Helesponto inteiro recoberto de navios, todas as suas margens e as planícies de Abidos cheias dos seus homens, Xerxes considerou-se a si próprio afortunado, mas em seguida chorou. Ao aperceber-se disso, Artábano, seu tio paterno, aquele que anteriormente exprimira livremente a opinião de que não era recomendável marchar contra a Grécia, esse homem, ao notar que Xerxes chorava, disse-lhe: «Ó Rei, quão díspar é a tua atitude de agora e a de há muito pouco! Primeiro, declaras-te a ti próprio afortunado, agora choras!» «É que me veio à mente – disse ele – lamentar a brevidade de toda a vida humana, pois, dentre toda esta grande multidão de homens que aqui estão, dentro de cem anos, nem um único sobreviverá.»

Heródoto, Histórias VII, 45-46

Xerxes, rei da Pérsia (entre 485 e 465 a.C.). É o Assuero do livro bíblico de Ester. Como todos os monarcas do imenso império persa, era designado "Rei dos Reis" (Shāhanshāh).

Dario o Grande, seu pai, falhara a invasão da Grécia (derrota em Maratona em 490), mas Xerxes decidiu continuar. Heródoto relata como esse rei orgulhoso, para passar o estreito do Helesponto (actual Dardanelos), manda construir pontes. Uma tempestade destrói-as, e o Rei, irado, manda executar os responsáveis pelas obras e, pior ainda, castigar o próprio mar. O castigo consistiu em repreendê-lo, dar-lhe trezentas chicotadas, lançar às suas águas duas penas e marcá-lo com ferros em brasa.

No auge do orgulho e da glória, ao contemplar as multidões dos seus exércitos e hostes de mercenários múlti-étnicos, deixa-se tocar por um sentimento de trágico próprio do pensamento grego. Lembra-se de que é um mero ser humano e chora, pensando que ele e os seus homens, enquanto humanos, têm uma curta vida. Artábano, seu tio paterno, que o aconselhara a não marchar contra a Grécia, vê-o chorar, e tem com o rei um diálogo sobre a vida humana, as calamidades que a atingem e o desejo que a todos num ou noutro momento toca de preferir a morte à dor de viver.

Morreria assassinado às mãos deste mesmo tio materno.

Não discuto aqui até que ponto há no episódio e no diálogo história, lenda, retoque literário dado por um espírito em várias ocasiões preocupado em transmitir testemunhos. A meditação sobre o humano, o tema e natureza do diálogo, no entanto, são muito próprios da sensibilidade helénica (já notórios na épica homérica, bem como em outros géneros poéticos e no trágico). Phthoneron theion: a divindade invejosa, que cerceia ao ser humano a delícia da vida, e a abate, por vezes cruelmente, pois só a ela, a divindade, está reservado ser makar, bem-aventurado.

E não só, são sentimentos transculturais, pois podem ser lidos em confronto com passos de livros bíblicos, como os de Job ou Eclesiastes.

domingo, novembro 08, 2009

CAIM E ABEL

E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao SENHOR.
E Abel também trouxe dos primogénitos das suas ovelhas, e da sua gordura; e atentou o SENHOR para Abel e para a sua oferta. Mas para Caim e para a sua oferta não atentou. E irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante. E o SENHOR disse a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar. E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou.
(
Génesis 4:3-8).


Disse José Saramago que já desde há longa data achava a história bíblica da rejeição divina do sacrifício de Caim uma história mal contada. Finalmente, a concepção ganhou substância, deixou a mente e passou para o papel. E assim veio à luz o romance-tese Caim.

Suspeitei que algo houvesse nesse relato, sobretudo pelo não-dito, susceptível de fazer germinar a dúvida, o questionamento. Que fizesse suspeitar que esse Deus seria de facto arbitrário e governados pelos humores hepáticos, e que seria imparcial. Não que de facto eu cresse que esse fosse o carácter deste Deus – bem pelo contrário –, mas coloquei a questão prévia de saber se o texto permitiria essa leitura.

E reli o episódio.


*****


Lembrei-me dos meus tempos em que era professor em exercício. E o meu espírito viajou para uma sala de aula, onde uma turma de alunos trabalhava. Nessa turma, havia dois irmãos, Caíque e Alberto. Embora gémeos, eram diferentes como a noite e o dia. Nesse dia, o Dr. Elias de Deus, o professor, trazia os trabalhos classificados para entregar aos alunos. Chamou-os um por um, e entregou-os, com um pequeno comentário (remetendo embora para a apreciação escrita). O menino Alberto entregara um trabalho impecável: cuidado na apresentação, caligrafia bem desenhada, sem uma rasura; as margens respeitadas, sem que uma haste de letra ou um hífen a transpusesse; linhas de intervalo entre os títulos e corpo de texto; abertura de parágrafos avançada ao milímetro; fontes consultadas e referidas com os devidos créditos; texto redigido com esmero. Notava-se que o aluno levara a sério a tarefa, a disciplina, o trabalho e o próprio professor. Tendo em conta não apenas as capacidades e o grau de domínio das competências programáticas por parte do aluno demonstrado neste trabalho, e com especial menção o empenho e dedicação postos na sua elaboração, o trabalho colheu a aprovação do professor e mereceu-lhe um 18.

Já o irmão não era menos destituído de inteligência, talentos e capacidades de aprendizagem, ainda que em áreas distintas das do irmão. Caíque desejava seguir veterinária, ao passo que Alberto sonhava ser engenheiro agrónomo, ou enólogo. Tinha Caíque, porém, grandes diferenças em relação ao irmão. Não levava muita coisa a sério na vida. Sabia que para conseguir o queria da vida tinha de estudar, mas isso mais não era do que uma maçada e uma obrigação para ele, ter nota e o diploma ao fim eram tudo quanto lhe bastava. Tinha de estudar e tirar o curso, mas o caminho tinha de ser sem escolhos e com o mínimo de esforço. Cabular não era motivo de vergonha ética para ele, apenas um expediente técnico, um atalho, um meio perfeitamente justificado pelo fim. E apresentou um trabalho que era o espelho perfeito da sua postura e carácter: redigida à pressa, descuidado na apresentação, caligrafia com rasuras. Dir-se-ia que o tinha feito de véspera, a correr, pois tinha de estar pronto antes do jogo do Porto na televisão, imperdível. A despeito das capacidades do aluno, o Dr. Elias de Deus não podia deixar de ser justo e dar a nota adequada de acordo com o mérito: deu-lhe 8.

O negligente Caíque, cuja vida se regia pela máxima de que o caminho mais curto entre dois pontos é a recta, que em tudo se comparava com os outros, ressentiu-se da apreciação do professor. Queria o sucesso dos outros mas sem pagar o necessário preço. Considerava que o professor tinha sido injusto. Que professor difícil de agradar! Como nada podia fazer contra ele, teve inveja do irmão. E rosnou um outro queixume contra ele (“Que era sempre o Alberto, que se calhar ele nem era tão dotado quanto o Alberto, mas ao menos fizera o seu melhor – ou pelo menos o que pensava ser o seu melhor – e se isso não fora ). O Dr. Elias de Deus tratou logo de pôr água na fervura nas emoções que avassaladoramente perturbavam o rapaz, e de fazer um pôr em acção um pouco da necessária psicologia educacional:

– Caíque, para singrares na vida o caminho é esforçares-te. Terás novas oportunidades, no próximo semestre, com novo trabalho, e no exame. Faz assim e serás aprovado. Ficares furioso com o teu irmão não te fará aumentar a nota e nada te trará de bom. Essa oportunidade também a tens: dominar a tua ira. Também nisso está o crescer e ser aprovado.

O professor apresentou, como era regulamentar, relatório escrito circunstanciado de justificação dos casos de níveis inferiores a 10 (vulgo “negas”).

Os olhos e o coração de Caíque estavam vermelhos de raiva, e as palavras do professor, longe de os aplacarem, funcionaram mais como gasolina derramada no fogo. O seu senso de justiça própria não conhecia alternativa. No regresso a casa no fim de mais um dia de escola, pretexto de convidar o irmão a irem ter com umas miúdas com quem tinha marcado encontro, desvia-o para um lugar isolado. Joga-o ao chão, à traição.

Soube-se depois que o corpo de Alberto foi achado sem vida.

Dr. José Saratogo, o director executivo da escola, chamou o Dr. Elias de Deus ao seu gabinete. Fazia-lhe espécie a avaliação do docente aos dois alunos. Não compreendia nem aceitava o que entendia como descriminação do aluno Caíque em relação ao Alberto. Nem o fratricídio mudou alguma coisa ao juízo do Dr. Saratogo, homem que se prezava de pensamento heterodoxo e independente, e que se pautava por padrões muito próprios e pouco subsidiários do senso comum. A recepção ao docente foi pouco amigável, mas lacónica e esclarecedora:

– A senhora mãe do colega, a despeito do seu modo de vida que muito deve à virtude, ainda assim não desmerece do carácter ainda mais torpe do seu filho, o caro colega. O colega é o único culpado do acto desesperado do pobre Caíque. Como pode o senhor cometer tão grosseira descriminação? O colega, como professor, não é de fiar. O relatório que apresentou não passa de um manual de maus costumes pedagógicos. Aliás, professores como o senhor não existem. São produto inventado de mentalidades reaccionárias. E fique a saber que vou instituir o devido processo disciplinar ao colega!


*****


Regressei à Bíblia e às afirmações de José Saramago. Na li nem em abono da verdade tenho especial vontade de ler o romance Caim. Restrinjo-me pois ao que disse na ocasião e que o vincula, enquanto homem e pensador, a uma determinada tese a respeito da Bíblia, de Deus e do Deus da Bíblia.

A releitura do episódio bíblico de Caim e Abel não podia ter sido mais clara e cristalina. Lê-se que Caim ofereceu uma oferta e Abel outra. Da de Caim nada nos é dito sobre a sua qualidade: se foi excelente, boa, sofrível, medíocre, suficiente ou má. Simplesmente uma oferta. Da de Abel, todavia, lê-se que consistiu numa oferta das primícias e da gordura.

Entre os povos pagãos que praticavam a oferta de sacrifícios animais, a gordura tinha de pingar. Recentemente, no almoço convivial após culto de baptismos das igrejas filiadas na Aliança Evangélica do Luxemburgo, em Remerschen (no rio Mosela), assavam-se carnes várias na brasa. Um irmão brasileiro levara picanha. Servi-me de uma bela fatia e pus-me a separar cuidadosamente a gordura da carne – como é meu habito, pois sempre me repugnaram gordura e nervo. O irmão brasileiro sentenciou:

– A gordura é o melhor da picanha.

A qualidade da oferta de Abel era pois a melhor: não só deu a Deus o melhor da carne (a gordura), como deu das primeiras crias nascidas. Pôs o seu cuidado em honrar a Deus com o melhor que tinha e antes de pensar no sustento próprio. Assim se compreende que a sua oferta tenha honrado e agradado a Deus.

Em contraste, a omissão quanto à qualidade da oferta de Caim permite intuir que o zelo esteve ausente, que se tratou de uma simples oferta. Feita segundo a mentalidade medíocre segunda a qual “o que conta é a intenção”. Como se não houvesse solidariedade entre a intenção e a oferta consumada. Com efeito, para Deus, o Senhor, tudo quanto não é o melhor não passa de resto. Não há o segundo nem o terceiro melhor, apenas o melhor e o resto. Não partilho, de modo algum, numa exegese corrente, segundo a qual a oferta exigida por Deus era de sangue. Com efeito, na Lei levítica, admitiam-se ofertas de outro tipo que não apenas o de animais. Estas fariam sentido se se tratasse de ofertas de expiação pelo pecado. No caso de Caim e Abel, nada nos é dito sobre o tipo de ofertas em questão. Parece pois que o que esteve em causa foi a intenção, a atitude dos ofertantes, e como esta se traduziu em termos práticos, tão-só isso. A oferta de Abel representa a consagração a Deus do melhor dos seus fiéis, a expressão visível do amor e temor que Ele lhes inspira.

Esta é a evidente leitura que pode e deve ser feita do episódio bíblico. O texto não suscita equívocos. Qualquer outra leitura não tem respaldo no texto, mas tão-somente em pressupostos oblíquos. E foi em pressupostos que se baseou Saramago. Os seus pressupostos e preconceitos, de uma leitura oblíqua. Tinha uma ideia do que o texto dizia, um preconceito contra o Deus da Bíblia, mas não o conferiu, o fê-lo, mas sem o entender, logo obliquamente. E viu no texto o que nele não está, não vendo o que nele está. Trata-se de pura e simplesmente ler e interpretar o texto, mesmo como literatura, algo que se ensina aos alunos desde o 1.º ciclo do ensino básico. Tal leitura feita mereceria uma rotunda negativa se fosse feita por um aluno num contexto de exame. Feita por um prémio Nobel é grave, mas tem honras de destaque nos jornais, na televisão e nos blogs. Tem todo o direito de não crer em Deus, mas não de ler mal.

Esta é a razão por que o considero intelectualmente fanático e desonesto.